Antes de proceder a uma análise global da obra é necessária uma referência sobre o período histórico e a evolução do Maneirismo no seu contexto nacional e por fim uma comparação estética entre o Maneirismo nacional e o internacional.
O conceito de Maneirismo deriva etimologicamente da evolução semântica da palavra maniera. Este conceito era inicialmente aplicado à literatura no contexto da poesia francesa no século XIV e da italiana no século XVI, o primeiro passo da passagem para o meio artístico está presente em Il Libro dell’Arte (fins do século XIV) de Cennino Cennini. O passo posterior na sua ampliação deve-se à carta de Rafael Sanzio a Leão X, juntando-lhe um juízo de valor estético na arquitectura medieval, ao referir a inexistência de graça e sem nenhuma maniera. Temos assim o conjunto de significados tomados pela palavra nos tratadistas de arte no século XVI: o método de realização de cada artista, a iconografia estabelecendo na arte características dos diferentes tempos e lugares e um carácter estético que se adapta às práticas artísticas preparado para ultrapassar tanto o gosto medieval como a rigorosa fidelidade ao natural.
O arquipélago da Madeira no século XVI obteve uma posição sólida no contexto da Expansão devido a sua localização geográfica, sendo um local de apoio as rotas para outros destinos. Devido ao seu clima ameno obteve um grande êxito na produção açucareira e através do comércio marítimo conseguiam escoar toda a produção e adquiri outros bens. A sociedade estava estratificada em classes sociais distintas que «viviam do seu trabalho o heterogéneo grupo dos mercadores, os oficiais dos mesteres, os camponeses, os homens da serra e os homens do mar. Os escravos mouros, mulatos, negros ou canários forneciam a mão-de-obra para os trabalhos mais pesados e asseguravam também o serviço das casas. Existia uma franja de marginalidade, que nas serras era constituída por salteadores, incendiários, homiziados ou escravos fugidos e, nos núcleos urbanos, por ladrões, vadios, pedintes, prostitutas e ciganos».[1]
Desde início a Igreja teve um importante no quotidiano, fornecendo quadros morais, cultura e espiritualidade, visto que, esta era uma instituição organizada. Nesta mesma altura, já estava implantado o mercado artístico na região onde através da cripto-história da arte, foi permitido situar as especificidades mais importantes do mercado artístico insular.
Os Franciscanos estão presentes desde o início da povoação da região devido a estes acompanharem os descobridores, com o isolamento em que se encontravam fez com que tivessem diversas atribulações e excessos, mas quanto obtiveram estabilidade fundaram o Convento de S. Francisco no Funchal que «torna-se o panteão das famílias ilustres que solicitavam nele ser sepultadas com o hábito de S. Francisco e muito contribuíram para o engrandecimento do Convento em bens e em património artístico»[2].
O mercado artístico do Arquipélago da Madeira, em meados do século XV, desenvolveu-se a partir das oficinas que existiam em Lisboa, donde eram encomendadas as obras para os santuários religiosos da diocese ou para as capelas das grandes famílias da nobreza existentes na altura, devido à dificuldade em deslocar boas equipas de trabalho. Ao longo do final do segundo quartel de quinhentos o mercado artístico sofreu algumas mudanças constatando-se a presença de obras de arte flamenga do pintor Michel Coxcie, devido a situação política existente em 1581 que demonstrava a ligação entre Flandres, Espanha e Portugal. O mercado artístico mais caro existente na Madeira proveio de Flandres e depois de Lisboa, em que houve a necessidade de criar oficinas regionais com oficiais de arte para a execução e examinação das mesmas, tendo estas aparecido em 1576. Através do estudo da arte decorativa do interior da Sé do Funchal, deparamo-nos com a presença de modelos italianos, como é o caso do friso de estilo Renascença, que devido à sua perfeição remonta para meados do primeiro quartel do século XVI.
Após a breve nota histórica sobre a evolução do Maneirismo no contexto internacional e nacional, irei proceder à análise da obra Nossa Senhora do Leite e S. Domingos e S. Francisco, da capela de Nossa Senhora da Candelária da Tabua, que actualmente se encontra exposto no Museu de Arte Sacra do Funchal.
A análise da obra será realizada num âmbito global, apesar desta ter sido vítima de algum movimento da aquisição ou da contra-reforma, visto que sofreu alguns repintes para esconder elementos de nudez presentes e, posteriormente, o desmembramento do retábulo separando a Virgem do Leite de S. Domingos e S. Francisco. Facto que originou a discrepância de datas relativamente à entrada no Museu de Arte Sacra do Funchal. Irei começar pela parte inferior do retábulo e depois passar à parte superior.
S. Domingos e S. Francisco é uma pintura a óleo sobre tábua de dimensões 80 x 101 cm proveniente da Igreja Matriz da Tabua, datada do inicio do século XVII.
Existe uma separação entre o plano principal do retábulo e o plano secundário que é visível desde início. No plano principal temos S. Domingos e S. Francisco ajoelhados em atitude de veneração, olhando para o alto, venerando a Virgem do leite a amamentar o menino que se encontra rodeada por uma nuvem. S. Domingos é caracterizado por um hábito branco e negro e um cajado pastoral dos bispos, que tem a parte superior a acabar em crucifixo. Evocando a fidelidade a Deus até a morte, usando por base, a relação existente entre o cão e o seu dono, onde este dá a sua vida pelo dono como sinal da sua fidelidade. Tendo por nome Ordem Dominicana, que deriva etimologicamente da evolução semântica da palavra Domini Canis (cães do Senhor). S. Francisco está com um hábito castanho e segura uma simples cruz apoiando-a no seu braço esquerdo, para que esta fique junto ao seu coração com a função de demonstrar o seu amor pela mesma. Tendo como função cuidar dos leprosos e posteriormente tornando-se pregador itinerante, levando Cristo ao povo com simplicidade e humildade. A sua devoção não se resume a sacrifícios mas também em dores e chagas, pelo facto de lhe ter aparecido no corpo as cinco chagas de Cristo. Fenómeno denominado por “estigmatização”, sendo a principal fraqueza física e causa da sua morte dois anos após o seu aparecimento.
Podendo assim relacioná-las devido a serem Ordens Mendicantes que surgiram no século XIII durante as Heresias Medievais, onde os Dominicanos e os Franciscanos tiveram importância a nível existencial e doutrinal devido a viverem de acordo com o evangelho. Ambas as Ordens possuíam uma Cruz específica com características diferentes mas com o mesmo simbolismo, simbolizando a pobreza, a fidelidade, sacrifício, mortificação e viver o Homem novo, «e chamando assim o povo com seus discípulos, disse-lhes: Se alguém me quer seguir, negue-se a si mesmo: e tome a sua cruz, e siga-me. Porque o que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á: Mas o que perder a sua vida por amor de mim, e do Evangelho, salva-la-á. Pois de que aproveitará ao Homem, se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?» (Mc, 8, 34 – 36)
O rosto dos santos possui um tom que mórbido e cadavérico que demonstra o jejum e a mortificação, «e quando jejuais, não vos ponhais tristes como os hipócritas: porque eles desfiguram os seus rostos, para fazer ver aos homens, que jejuam. Na verdade vos digo, que já receberam a sua recompensa. Mas tu, quando jejuas, unge a tua cabeça, e lava o teu rosto. A fim de que não pareças aos homens que jejuas, mas somente a teu Pai está presente a tudo o que há de mais secreto; e teu Pai que vê o que se passa em secreto te dará a paga.» (Mt, 6, 16 – 18)
Num plano secundário, mostra a paisagem de cidades medievais activas localizadas no litoral de um rio ou mar que se encontra com algum movimento de barcos e montanhas a se dirigirem para o horizonte, onde recorre a técnica de sfumatto fazendo com que o mar ou rio, o céu e algumas montanhas por momentos parecem estar unidas devido estar muito esbatido não permitindo desmistificar se é uma ilha ou continente e consequentemente se é um rio ou o mar. O que pode fazer referência à época dos grandes feitos e obras do povo português, devido a presença da bandeira da monarquia Portuguesa nas embarcações, durante o período dos descobrimentos em que os Franciscanos e os Dominicanos embarcavam com a intenção de propagar e expandir a Fé cristã pregando aos povos que iriam descobrindo ao longo da rota marítima realizada. O tipo de paisagem utilizado no retábulo é semelhante à utilizada na Batalha de Issus por Albrecht Altdofer no Renascimento Setentrional, recorrendo a uma visão panorâmica demonstrando a mais antiga paisagem pura.
Nossa Senhora do Leite é uma pintura a óleo sobre madeira de dimensões 92 x 106 cm proveniente da Igreja Matriz da Tabua, datada do no início do século XVII.
Esta parte superior do retábulo representa no centro da composição a Virgem do Leite que está a dar de mamar ao menino que se encontra sentado sobre um pequeno mando dourado, sentada entre as nuvens e rodeada por anjos. Sendo esta uma das variantes da Virgem da Ternura. A Virgem do Leite está envolta num manto vermelho e tem na cabeça um delicado véu transparente com uma ponta esvoaçante, sendo possível verificar uma camisa verde que se abre o seu peito. A nível cromático as cores utilizadas na roupa da virgem possuem um grande simbolismo no cristianismo. O manto vermelho pode ser sinal de dois paradigmas, isto é, pode simbolizar que o Espírito Santo desceu sobre a Virgem do Leite e a tomou para realizar através dela a obra da encarnação do Verbo e por outro lado, como a Virgem se encontra entronizada, o manto vermelho pode demonstrar o sinal de realeza; o verde da camisa remontar à esperança de Deus sobre a salvação do Homem ao enviar Jesus Cristo à Terra; o pequeno manto dourado onde o menino esta sentado significa a divindade de Jesus, o filho de Deus. O facto de estar a beber o leite materno é sinal da sua humanidade, fragilidade e dependência. Demonstrando a afirmação da Divindade verdadeira e da verdadeira humanidade, que Jesus é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, tal como foi afirmado no Concílio de Caladónia em 451 d.C..
O céu possui um colorido intenso de um amarelo que forma um pequeno degradé que muda para rosa na zona onde se distribuem as nuvens em várias tonalidades cromáticas e os puttis e com a existência de algumas transparências. Os puttis possuem um azul carregado por detrás das asas, que por vezes contem um pequeno degradé que forma um elevado contraste com as carnações. A existência de transparências pode remeter à distância com que estes se encontram da Virgem do Leite, não impedindo a sua veneração.
A harmonia, ternura e paz presente no olhar dos anjos é semelhante ao da Virgem enquanto amamenta e ao do menino ao ser amamentado pelo leite da Virgem, leite este que simboliza a passagem da sabedoria divina ao menino. A presença destas sensações durante a amamentação do Menino são explicadas na teoria de Freud, citando que «A figura da criança que mama no seio da mãe tornou-se um modelo de toda a relação amorosa».
As aparições da Virgem do Leite estão relacionadas com S. Bernardo, onde aparece rodeada por nuvens com o menino ao colo e com a mão esquerda aperta o peito jorrando-lhe leite para a boca quando este se encontra de joelhos transmitindo-lhe a divina sabedoria. Todavia, pode ser associada a S. Francisco porque a grande popularização que obteve, valorização amorosa e devoção se deve a este e a S. Domingos devido a ter sido um Dominicano a estabelecer a imagem de Jesus, caracterizando-o com uma aparência grandiosa e majestosa.
A nível iconográfico, este retábulo levanta algumas dúvidas sobre quem será o seu pintor, visto que foi classificado como pertencente à oficina portuguesa do século XVII, apesar de ter presente características que possibilitam a atribuição a vários artistas. O traçado utilizado no cabelo e a testa da Virgem é semelhante ao que Gaspar Dias utiliza na Aparição do Anjo a S. Roque, o olhar de um dos anjos é parecido com o usado por Francisco Venegas na Santa Maria Madalena, o fundo do retábulo onde estão representados S. Domingos e S. Francisco em que representa a natureza levando o seu prolongamento até ao horizonte é parecido com o usado por Diogo Teixeira no Repouso na fuga para o Egipto. Estas Características não eram exclusivas dos pintores citados fazendo com que o retábulo da Virgem do leite e S. Domingos e S. Francisco não tenha sido atribuído a um pintor específico da época.
O facto menino estar apoiado sobre o braço direito da Virgem e esta ter o cabelo apanhado exclui a hipótese de pertencer ao Frei Carlos, monge flamengo, uma vez que as obras que pintou sobre a temática o menino estava apoiado no braço esquerdo da Nossa Senhor e esta possuía os cabelos longos.
A presença de várias vanguardas levanta alguns paradigmas, visto que esta é classificada como uma obra do estilo Maneirismo e possui elementos que são característicos de outros estilos. O facto da Virgem do Leite aparecer entronizada e esta ser utilizada em várias pinturas desde a arte Bizantina ate o Proto-Renascimento. A ausência de perspectiva, tendo esta sido introduzida na pintura durante o gótico final. Apesar da presença de vários estilos artísticos o retábulo possui características do Maneirismo, o que faz com que seja caracterizada como uma ora Maneirista.
No retábulo estamos perante uma simetria idêntica à na Virgem, no Menino, em S. Domingos e em S. Francisco, fazendo com que a parte central deste seja zona do peito e orientando direcção do olhar dos Santos. Nesta pequena análise atribuiu a formação de um triângulo, em que na base se encontra S. Domingos e S. Francisco representantes de ordens católicas no mundo e no topo deste a Virgem do Leite com o Menino onde demonstra a estratificação hierárquica do poder divino e a representação da divina trindade no mesmo.
Porém, ao introduzirmos os puttis nesta análise, podemos verificar que na sua disposição obtemos um hexágono irregular situado antes da Virgem. Sendo esta figura composta por triângulos equiláteros que se interpenetram simbolizando a fusão dos princípios opostos, que representa o símbolo do poder divino da criação. De igual modo, podemos associar como uma separação do mundo terrestre com o mundo divino, onde só existe ligação entre eles através da Fé e orações dos cidadãos.
O Maneirismo (do italiano maniera, a maneira ou estilo de um artista) traduzia a marca estética de um artista. Esta maniera tornou-se um paradigma para toda a pintura europeia e se caracteriza pelo estilo que marca a transição entre o Renascimento e o Barroco, período que vai de cerca de 1520/30 a 1600. Tendo este, de uma maneira geral designar o estilo de um artista ou de uma época e possuindo as suas próprias regras.
Este estilo é considerado, como o resultado do conflito entre uma geração jovem e as obras dos grandes mestres, sendo dinâmico e agitado demonstrando uma atitude contra os clássicos de clareza e harmonia. A sensibilidade artística Maneirista exigia uma maior liberdade de movimentos para que as tensões do espírito, as convicções religiosas mais profundas e os sentimentos mais arrebatados pudessem também ser objecto de inspiração, onde a estilização exagerada, o abandono as linhas harmoniosas impostas pelo estilo vigente, criando labirintos, espirais e proporções inesperadas.
Com isto, nasce uma nova estética que vai contra a que era utilizada anteriormente, onde as obras de artes deveriam seguir a razão para serem consideradas belas e copiavam a natureza e o Homem. Como o Maneirismo era um estilo individual onde cada pintor tinha a liberdade de pintar sem seguir regras estabelecidas, este ganha uma estética individual que varia de artista para artista. Contudo, existiam características gerais entre eles em que estava presente a desarmonia, tensões interiores, a desordem e a ausência de exactidão anatómica nos corpos representados. Enquanto que em Portugal o Maneirismo não adquirir uma estética como a nível internacional devido a só ter sido introduzido posteriormente e a igreja já possuía um poder extremamente forte como nunca tinha tido, originando com que a pintura Maneirista portuguesa fosse mais comedida e restrita. Os aspectos de nudez não foram muitos representados, havia mais ordem e também o recurso a perspectiva, porém recorriam a características Maneiristas que foram adquiridas por alguns pintores pelo facto de se terem deslocado a Itália nesse período.
[1] Maria Pestana, Das coisas visíveis às invisíveis, Volume I, Tese de Doutoramento em História da Arte da Época Moderna, Universidade da Madeira, Funchal, 2004, p.65.
[2] Idem, ibidem. p. 104